Um “Caixão” para Drácula — Uma conversa sobre mídium e texto

Thiago Carvalho Gonçalves
6 min readDec 5, 2020

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Caso você tenha caído nessa pagina por acidente, esse texto foi escrito como parte de um dos modos de avaliação da matéria “Discurso literário: criação, edição e consumo” do curso de Letras na UFSCar.

Portanto ele tem duas propostas: conversar sobre objetos editorias, usando como base a tese de Gustavo Primo: “ver o livro como buraco negro: a formalização material da antologia da literatura fantástica de bioy casares, borges e ocampo” (Que é bem interessante, inclusive!) e apresentar uma ideia de reedição de uma obra já publicada. Essa ideia continuará sendo trabalhada ao longo da disciplina.

E a obra que eu escolhi re-editar foi Drácula de Bram Stoker. Afinal de contas, Drácula é um livro que quase nunca é republicado… certo? Certo?

Gif animado mostrando diversas edições de Drácula a venda na Amazon

Errado

Mas eu quero tentar fazer algo inédito (pelo menos para mim) com ele. Eu quero trocar o mídium padrão em que ele costuma ser encontrado.

“Thiago, o que que é mídium?”

Mídium é o objeto de estudo da midiologia e não pode ser confundido com mídia. Usando uma citação de Debray (1994) presente na tese mencionada no segundo paragrafo, o mídium se apresenta nas seguintes dimensões:

1. Um procedimento geral de simbolização (palavra, escrita, imagem analógica, cálculo digital);

2. Um código social de comunicação (a língua natural na qual a mensagem verbal é pronunciada: latim, inglês ou tcheco);

3. Um suporte material de inscrição e estocagem (argila, papiro, pergaminho, papel, banda magnética, tela);

4. Um dispositivo de gravação conectado a determinada rede de difusão (uma gaveta cheia de manuscritos, tipografia, foto, televisão, informática).

Quando digo que quero trocar o mídium padrão de Drácula estou me referindo especificamente ao suporte material de inscrição, em outras palavras não usarei os tão conhecidos livros e livros digitais.

Drácula, o livro original, é um romance epistolar. Ou seja, a narrativa é contada através de cartas, anotações em diários, memorandos, noticias de jornal e telegramas escritos pelos personagens da narrativa. Todos eles “compilados” no livro na ordem cronológica dos acontecimentos.

Drácula, mais especificamente é composto de 19 cartas, 9 telegramas, 6 memorandos, 6 diários (mas que talvez sejam só 4, a edição que eu tenho é meio esquisita), 6 noticias de jornais (sendo que algumas foram coladas no diário de uma personagem), 1 diário fonográfico e 1 bilhete.

Eu contei… mas não conferi uma segunda vez, então talvez esses números estejam errados.

Tabela de Excel mostrando a quantidade de tipos de textos presentes na obre Drácula

Minha ideia é retirar esses textos do objeto livro e transpô-los nos objetos que dizem ser (cartas, diários, telegramas…) e coloca-los todos em uma caixa. Uma caixa grande. Um “caixão”, caso você queira esconder uma piadinha no titulo da postagem.

Provavelmente uma caixa retangular do tamanho da de um jogo de tabuleiro

O leitor hipotético desta edição deverá, por conta própria e com a ajuda das datas que indicam quando cada texto foi escrito na narrativa, encontrar a cronologia dos textos para tentar entender o enredo, dessa forma aumentando um pouco mais o mistério e aproximando mais o leitor da historia, transformando-o em uma espécie de detetive.

Livros/caixa não é uma ideia 100% original. Me inspirei na HQ Building Stories e no livro/jogo de jantar Lululux, duas obras que eu gostaria bastante de ter, mas não tenho. Isso alerta um problema dessa ideia.

Como disse Hendel (citado por Gustavo Primo):

Por nobres que sejam os atributos que o editor confira aos livros, eles são mercadorias e precisam ser vendidos com lucro, se os editores quiserem sobreviver. Os livros devem ser fabricados com o mínimo de desperdício possível, a fim de permitir sua venda pelo editor por um preço razoável, e isso exige a padronização do seu formato e dos materiais que entram em sua fabricação. Qualquer elemento que varie por pouco que seja do padrão aumentará os custos. (HENDEL, 2006, p. 35)

Uma edição não padronizada é uma edição limitada e cara. Além disso, a maneira que estou propondo que a leitura da obra seja feita pede algo diferente do comum para o leitor. Basicamente, o leitor pagaria mais caro para ler de uma forma mais inconveniente. O que seria ganho nessa troca?

Quero trazer uma citação para falar sobre preço e valor e outra citação para falar sobre a inconveniência.

Sobre a inconveniência, trarei (em tradução livre) uma citação do livro sobre Design de Jogos chamado Regras do Jogo, escrito por Katie Salen e Eric Zimmerman:

“Bernard Suits discute o jogo de golfe: ‘Suponha que o meu proposito seja colocar um pequeno objeto redondo dentro de um buraco no chão da maneira mais eficiente possível. Fazer isso com as minhas mãos seria a maneira natural de fazer isso. Eu certamente não pegaria um pedaço de metal, ficaria a 300 metros de distancia do buraco e tentaria bater na bola para ela entrar no alvo. Não seria muito inteligente. Mas fazer isso é um esporte popular e uma maneira de mostrar como jogos se diferem de uma atividade mais técnica’”

De fato, não estou propondo uma maneira eficiente de se acompanhar uma historia, mas, assim como em um esporte ou em um videogame, eu acredito que trazer um elemento limitante pode ajudar a engajar o leitor pelos motivos mencionados antes. O leitor fará parte da narrativa da mesma forma que um jogador é parte do jogo que joga. No caso seria mais como encontrar registros antigos esquecidos no tempo enquanto você tenta construir a narrativa que eles contam.

O Objeto livro tenta, geralmente não entrar na frente e atrapalhar uma leitura continua, mas há sim, benefícios para mexer com o seu formato.

Sobre o objeto livro, Gustavo Primo diz:

Ainda mais que, com o passar dos séculos, o livro tornou-se objeto tão hiperespecializado pelas normas e técnicas que o constituem, que sua força simbólica convergiu num verdadeiro centro de gravidade simbólica tão denso que pode chegar a “soterrar”, ocultar em si seus próprios processos de constituição, como condição sine qua non para sua existência. Há casos exímios em que o livro, em especial o livro literário, adquire tanta força que se transforma em buraco negro: só o que nos resta, nesses casos, é observar aquilo que sobrevive nos arredores do buraco negro, os vestígios que não se ocultaram, aquilo que se deixa entrever em seu horizonte de eventos.

E sobre objetos fora do padrão:

Ao mesmo tempo, tudo o que muda a forma do livro para diferente do padrão pode conferir-lhe valor simbólico por isso. No entanto, não é fácil precisar essa relação entre o valor monetário e o valor simbólico, um dos grandes desafios de nossa pesquisa.

Acredito que o texto de Drácula, justamente por ser tão reconhecido e republicado, é um texto que deva ser brincado de formas diferentes. Dessa forma, mais reflexões possam surgir a partir dele, novas leituras e novas experiências. A caixa Drácula nunca substituirá o(s) livro(s) Drácula(s), mas pode expandir a maneira do leitor experienciar o texto.

O “Lugar no campo” (como diz a professora Luciana Salazar Salgado) da caixa Drácula ficaria em um lugar para pessoas que possuem o habito de leitura, tanto de clássicos como de terror e suspense, e que estariam dispostos a brincar um pouco com esse hobby.

A caixa Drácula não perde seu valor simbólico por Drácula ser uma obra tão amplamente publicada, O seu valo vem justamente do quão difundida essa historia é.

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