“Você é Mais Engraçado em Alemão” — Reflexões sobre tradução/transformação

Thiago Carvalho Gonçalves
3 min readNov 22, 2020

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Em um dos (inúmeros) vlogs de John Green, autor do best-seller “A culpa é das estrelas”, John conta a historia de uma noite de autógrafos na Alemanha. Um fã se aproxima do escritor para ter seu livro assinado e diz, se lembro bem, algo como: “eu já li o seu livro em inglês e em alemão, mas eu prefiro a versão traduzida… você é mais engraçado em alemão”.

Nunca li os livros de John Green e não tenho habilidade com a língua alemã, por isso não posso dizer se existe algo inerentemente humorístico em ambos, mas essa historia sempre me faz pensar sobre as qualidades transformativas que a tradução tem.

Porque é isso que uma tradução é, não é? Uma transformação.

O Verbete sobre tradução literária do livro “tarefas de edição” trás a seguinte pergunta.

Um texto traduzido não seria também uma obra própria? Quando lemos, em um conto do escritor russo Anton Tchékhov, “Санки летят как пуля. Рассекаемый воздух бьет в лицо, ревет, свистит в ушах, рвет, больно щиплет от злости, хочет сорвать с плеч голову ”, de quem é a autoria? E quando lemos esse trecho na tradução de Tatiana Belinky? “O trenó voa como uma bala. O ar cortado chicoteia o rosto, silva nos ouvidos, bate, belisca raivoso, até doer, quer arrancar a cabeça dos ombros” (TCH EKH O V, 1959, p. 38)

De quem são as piadas da edição alemã de “A culpa é das Estrelas”?

Quando se quer traduzir não adapta-se só a língua, mas a cultura também. E importante entender o que está sendo dito em um âmbito maior do que apenas os significados das palavras. É preciso realizar o trabalho de localização. Como esse personagem falaria se ele fosse de outro país?

Sempre existe a vontade em uma tradução de ser o mais fiel possível ao original, mas o texto traduzido tem que fazer sentido para a língua e cultura alvo. O tradutor não quer, por exemplo, que uma pessoa que comprou um livro de receitas escrito em língua estrangeira erre ao fazer um bolo caso a xicara de um país seja maior do que a xicara de outro.

Ao mesmo tempo, é possível garantir que um bolo em português tem o mesmo gosto que um bolo em russo?

Talvez não seja o livro que é mais engraçado em alemão do que em inglês, às vezes a situação narrada é mais cômica ao olhar alemão do que o olhar estadunidense.

O ponto que eu quero chegar é: Estou aceitando freela de tradução português-inglês. Por favor, me contratem.

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Não, brincadeira (mais ou menos…).

O ponto é que o trabalho do tradutor é fazer o texto ser entendido. Porém, para ele ser entendido ao máximo que a transição entre línguas permite, ele precisa ser transformado muito além de uma palavra ser trocada para a outra. O texto tem que fazer sentido para a pessoa do contexto da língua alvo e isso implica um ato transformacional. Não uma transformação completa ao ponto de se ter outra coisa, mas uma que consiga fazer um bolo parecido em uma receita ou uma piada mais gostosa em um livro.

Este foi o primeiro post de uma serie que estou escrevendo para a disciplina “Discurso Literário: Criação, Edição e Consumo” do curso de Letras da UFSCar.

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